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Marco legal é insuficiente para mudar cultura de inovação no país

O Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, de janeiro desse ano, sem dúvida, facilitará a produção de inovação no Brasil, entretanto muitos desafios correspondem à mudança de uma cultura de inovação que diz respeito a todos os atores envolvidos – universidades públicas, instituições e empresas. A tese de doutorado da pesquisadora Patricia Tavares Magalhães de Toledo traz um estudo inédito que avalia e sugere mudanças essenciais para a fluidez da inovação como parte de uma ferramenta estratégica de competitividade do País.

“Apesar de serem reconhecidas como importantes produtoras de novos conhecimentos, as universidades ainda são pouco utilizadas pelas empresas como fonte de inovação”.

Converter conhecimento em inovação, produzir e colocar no mercado tecnologias de valor agregado que beneficiem a sociedade é uma das riquezas de um País. A sua capacidade de transformar ciência em inovação demonstra seu grau de desenvolvimento. Assim como exportar produtos de valor agregado e ter uma balança comercial em que outras partes do mundo desfrutem do conhecimento gerado naquele território é uma das formas de posicionar o País no mercado internacional, valorizar seus produtos, sua mão de obra, seu conhecimento, movimentar a economia local e se desenvolver. Para isso, a tríade governo, iniciativa privada e universidades precisam agir juntos.

Ao contrário de muitos países, o Brasil reconheceu a necessidade dessa relação somente na última década, quando foi criada a Lei da Inovação (Lei nº 10.973), de dezembro de 2004, que estimula a cooperação entre universidade e empresa, através de ferramentas de estímulo à inovação. Doze anos depois, a relação entre os atores essenciais para o processo produtivo de inovação continua delicada, embora, em janeiro desse ano, o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação tenha feito significantes alterações na Lei de Inovação, propondo novas ferramentas de estímulo.

A última Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec), publicado em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que a universidade é considerada pela indústria uma fonte de inovação importante. Entretanto, como pode ser visto no gráfico, os principais parceiros de cooperação para inovação para a indústria são os fornecedores, clientes ou consumidores. A pesquisa, que corresponde ao período de 2009 e 2011, estimou que somente 35% das empresas pesquisadas implementaram alguma inovação nesse período.

Por que as universidades não são procuradas pelas empresas como fonte de inovação? Será que as empresas não investem em inovação? Essas perguntas motivaram Patricia Tavares Magalhães de Toledo a pesquisar junto a sete universidades brasileiras e nove do exterior – consideradas referência em inovação – a gestão de inovação dessas instituições. Foram elas: Georgia Technology Institute (Georgia Tech), Hebrew University of Jerusalém (HUJ), Massachusetts Institute of Technology (MIT), Pontificia Universidad Católica de Chile (UCC), University of California (UC), University of Cambridge (Cambridge), University of Michigan (U-M), University of Pennsylvania (UPenn), University of Utah (UU), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Universidade de São Paulo (USP).

Sua tese de doutorado foi apresentada no início desse ano sob o título “A gestão da inovação em universidades: evolução, modelos e propostas para instituições brasileiras”, orientada pela professora Maria Beatriz Machado Bonacelli, no âmbito do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), do Instituto de Geociências da Unicamp. Patricia pesquisou e comprovou vários fatores que influenciam nessa relação. A pesquisadora apresentou diversos gargalos que inibem a produção de inovação no Brasil e trouxe novas propostas baseadas em experiências internacionais que dão certo.

“A motivação para a pesquisa surgiu em decorrência da minha atuação na Agência de Inovação Inova Unicamp de 2004 a 2013, na qual tive a oportunidade de perceber o potencial inovador de várias pesquisas que não achavam um parceiro empresarial para chegar ao mercado, bem como a pequena taxa de criação e empreendimentos de base tecnológica a partir de pesquisas universitárias no Brasil, quando comparado com países como Israel, Estados Unidos e Reino Unido. […] Então eu me questionava: quais são os grandes gargalos? Alguns gargalos por parte da universidade eu podia ver, alguns das empresas que tínhamos contato, mas eu queria entender profundamente porque que isso não acontecia de uma forma expressiva no Brasil”, conta.

Patricia trabalhou por nove anos na Inova Unicamp, em que atuou como diretora de Propriedade Intelectual e de Transferência de Tecnologias. Sua experiência em uma agência intermediadora instigou a pesquisadora a investigar os processos de inovação a partir da universidade.

“Apesar de serem reconhecidas como importantes produtoras de novos conhecimentos, as universidades ainda são pouco utilizadas pelas empresas como fonte de inovação. Uma das principais razões é que concretizar com êxito essas parcerias não é trivial, uma vez que a cooperação universidade-empresa requer mudanças em seus modelos institucionais e gerenciais, e a superação de diversos desafios estratégicos, culturais e organizacionais. Essas dificuldades se tornam ainda mais evidentes em países como o Brasil, em função da criação tardia das universidades e da industrialização no País”, comenta Patricia.

A pesquisadora conta que a indústria local cresceu desenvolvendo tecnologias para as multinacionais que se instalavam no Brasil. A mão de obra barata facilitou a produção da tecnologia no País há algumas décadas, mas não motivou a produção e gestão do conhecimento e de tecnologia desenvolvida localmente. Em relação ao PIB, na última década, o investimento em pesquisa e desenvolvimento no Brasil oscila em torno de 1,5%, a metade, em média, do que investe países mais desenvolvidos como Israel e Japão.

“Se você avaliar em termos de depósitos de patentes, nos Estados Unidos, os maiores depositantes de patentes são as empresas; no Brasil, é o contrário: o maior depositante de patentes são universidades. Isso mostra que as atividades de pesquisa e desenvolvimento se concentram muito nas universidades, as empresas ainda fazem pouco. Não é uma característica só do Brasil que as universidades são a fonte preferencial de inovação das empresas, mas no Brasil isso é particularmente acentuado”, diz.

Patricia lembra que, durante sua pesquisa, perguntou às agências de inovação quantas empresas tinham sido criadas a partir da licença de alguma patente. A maioria não soube precisar esse número. “No exterior, essa informação é monitorada rotineiramente”, diz. A pesquisadora ressalta, entretanto, que a cultura de inovação tem mudado na última década, a exemplo de várias empresas inovadoras, como Natura, Embraer e 3M.

Cultura de inovação e educação
Grandes desafios para a relação indústria-empresa e a gestão da inovação se resumem à palavra “cultura”. Patricia explica que essa parceria já é “delicada” porque é necessário convergir objetivos diferentes. Enquanto a empresa visa gerar lucro, a universidade quer disseminar conhecimento; enquanto a empresa quer sigilo por causa da concorrência, a universidade tem que publicar seus conhecimentos; enquanto o tempo das pesquisas universitárias é de médio e longo prazo, a empresa tem muita urgência em função do time marketing.

“A própria cultura empreendedora de aversão a risco”, é a segunda questão cultural que a autora se refere. “Porque inovação envolve risco, você está investindo em uma tecnologia que ainda não está aprovada, que pode não dar certo e que requer, pela sua natureza, um risco. E o brasileiro tem, tradicionalmente, uma aversão ao alto risco e o medo do fracasso”, fala. A experiência no exterior mostrou à pesquisadora que a cultura do empreendedorismo fora do País enxerga o fracasso como parte do aprendizado.

“É o que dizem, se você nunca cometeu um erro em uma empresa é porque você não tentou o suficiente, você não se arriscou ou não se mostrou ao mercado adequadamente”, diz. Em culturas como de Israel, Reino Unido e Estados Unidos, o empresário que teve várias empresas e que, de repente, não deram certo, é visto em processo de aprendizagem, segundo Patricia. “Aqui não! Isso mostra a nossa dificuldade de lidar com esse risco da inovação”, afirma.

A cultura educacional é outro grande desafio para essa relação. Para Patricia, os ativos intelectuais, os ativos intangíveis e de proteção do conhecimento são pouco trabalhados nos cursos de graduação. “Têm cursos sem uma disciplina que fale o que é uma patente, como você faz uma busca em uma base de patentes, como você pode proteger, como você pode registrar uma marca da sua empresa e a importância de você proteger o conhecimento para poder fazer uso dele”, lamenta. Ela argumenta que, tradicionalmente, a educação brasileira não estimula o empreendedorismo. Há carência de programas que estimulem o empreendedor, até mesmo aquele introduzido dentro da academia.

Em sua tese, a pesquisadora propõe ampliar a oferta de disciplinas de empreendedorismo e propriedade intelectual na graduação, além da criação de bolsas para estudantes da graduação para trabalharem junto às equipes do NIT, aproximando o conhecimento do mercado aos estudantes. Por outro lado, ela também sugere que as universidades envolvam mais empresários na análise das suas tecnologias e nas suas atividades de inovação.

Em países com a cultura de inovação mais desenvolvida, a cultura empreendedora é ensinada desde muito cedo. Na Coreia, por exemplo, foi criada uma cartilha sobre propriedade intelectual desenvolvida especialmente para crianças do ensino fundamental. “Então, começam a falar sobre isso de uma forma lúdica, lógico, mas uma forma que já crie as crianças pensando nisso. […] Se você começa a formar pessoas com esse pensamento crítico, olhando empreendedorismo, olhando inovação como algo positivo, você tem chance de ir mudando a cultura de um país”, sugere a pesquisadora. Patricia afirma que é necessário ter uma política pública de estímulo a inovação que coloque o assunto em pauta. “Inovação é uma estratégia do país”, enfatiza.

A pesquisadora enfatiza a preocupação de uma ideia que paira a universidade quanto à suposta privatização do conhecimento. Ela entende que há um preconceito quando se trata de transferência de tecnologia público-privada. “Muitas vezes se você não tiver um parceiro, a universidade não consegue produzir conhecimento. Ela foi criada para isso. […] Essa é uma cultura que entende como se a universidade fosse ter um lucro ou fosse vender algo que é público, o contrário, tem muitas tecnologias que se a universidade não tiver um parceiro, nunca chegarão à sociedade”, argumenta.

Sua tese também identificou que o nível de inovação no País não está relacionado somente as dificuldades das universidades públicas, mas também ao pequeno interesse, ou reduzida capacidade que o setor produtivo tem de investir em atividades de P&D em inovação. “Nós vemos muitas empresas que não percebem o benefício, a vantagem ou a necessidade de inovar, ficam naquela receita do mais do mesmo, acabam cortando custo sem que isso decorra na melhoria de um processo ou de um produto”, conta.

Legislação e NITs
A diferença de interesse das universidades e das empresas dificulta odiálogo entres esses dois atores. Um intermediário para essa relação é essencial para facilitar o processo de inovação no País. No Brasil, são os Núcleos de Inovação e Tecnologia (NIT) que auxiliam essa comunicação. Essas agências possuem profissionais capacitados para entender os dois universos em questão, os interesses em jogo dos envolvidos e da sociedade. “Quanto mais ela conseguir se comunicar com os dois atores, mais fácil será. Quanto mais o governo também tiver políticas que não restrinjam a universidade, mais florescerá essa relação”, opina Patricia.

A pesquisadora explica que, como a maioria das universidades não tinha um órgão para facilitar essa relação com as empresas, a Lei de Inovação foi importante para estimular essa parceria. É também responsabilidade do governo de um País criar ferramentas que instiguem essa relação, pois a ampliação dessa cooperação favorece a compet i t ividade do mercado a partir das inovações.

A Lei do Bem (Lei nº 11.196/05), que cria a concessão de incentivos fiscais às pessoas jurídicas que realizarem pesquisa e desenvolvimento de inovação tecnológica, foi uma das ferramentas criadas pelo governo para estimular as empresas a inovarem. Linhas de financiamento para projetos de P&D também são uma das ferramentas do governo brasileiro para fomentar a inovação.

“A lei de inovação foi um avanço, foi a primeira a tratar das parcerias público/privado em inovação, mas ela ainda tinha alguns gargalos, uma insegurança jurídica e [mesmo depois do Marco Legal publicado em janeiro desse ano] ainda ficaram algumas coisas. […] Todo trabalho do governo tem sido tanto em estimular as empresas a inovar no País, como eliminar as burocracias que existem para concretizar a parceria universidade e empresa, e também para estimular as universidades a se aproximarem das empresas”, explica.

Entretanto, segundo a pesquisadora, a lei ainda inibe a inovação, principalmente, se comparada a experiências internacionais de cooperação que garantem maior flexibilidade aos cientistas no processo produtivo de inovação. “Nos Estados Unidos e na Inglaterra, o professor pode criar uma empresa para colocar essa tecnologia no mercado. Nesses países, ele pode. Eles têm vários procedimentos pra lidar com conflitos de interesse – uma das medidas, por exemplo, é que o professor pode trabalhar na empresa, mas não pode ser o CEO. Isso aumenta o número de empreendimentos com base tecnológica criados a partir das tecnologias da universidade”, explica.

No Brasil, a lei inibe isso. Para o docente participar de uma empresa de base tecnológica, ele tem que tirar uma licença sem recebimentos. Ele pode tirar uma licença de três anos sem receber seu salário, ficando afastado da atividade de docência. Essa licença pode ser renovada por igual período. “O professor que fica seis anos longe da sua carreira acadêmica fica defasado e deixa de formar profissionais e gerar conhecimento. Nos Estados Unidos e na Inglaterra isso não é proibido”, conta.

“Nossas leis são muito enrijecidas, em alguns casos, elas são criadas mais para coibir do que para favorecer [a inovação]”.

Dessa forma, em seu trabalho, Patricia recomenda a modificação do Art. 15 da Lei de inovação, “substituindo a obrigatoriedade de o servidor requerer licença sem vencimentos para poder participar de empresas pela necessidade de mudança de seu regime para dedicação parcial e do atendimento da política de conflitos de interesse da universidade”

A pesquisadora também sugere que os NITs, como intermediários das atividades de inovação entre universidades e empresas, possam se qualificar como Organização Social. A autora sugere que esse modelo daria flexibilidade ao Núcleo, enquanto o controle estratégico ficaria na mão da Instituição Científica Tecnológica (ICT) pública.

“[Os NITs] estão sujeitos às leis da administração pública, que envolve burocracia, restrição para contratação, envolve a Lei 666 – que exige editais e contratações públicas para contratar serviços. Por isso, eles acabam não conseguindo ser intermediários eficazes nessa relação, porque eles também sofrem com a burocracia e não têm flexibilidade necessária”, lamenta.

Outro impeditivo à inovação, identificado no trabalho da pesquisadora, diz respeito aos recursos e concorda com a sugestão citada anteriormente. Hoje, segundo a autora, a universidade que define a porcentagem do orçamento a ser destinada a agência de inovação. Isso não garante recursos aos Núcleos, o que não contribui com o objetivo da Lei de Inovação quanto à criação dos NITs. Uma das recomendações de Patricia, que já foi implementada no novo Marco Legal, é que os NITs possam ser pessoas jurídicas para definirem estratégias de gestão de pessoas e gerenciem suas contratações e planos de carreiras que estimulem a produção de inovação. Essa medida foi parcialmente atendida, mas, segundo Patricia, ainda falta regulamentar os critérios para isso.

Entre outras sugestões, Patricia também destaca a necessidade de ampliar os incentivos à inovação para micro e pequenas empresas. Segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), há mais de 9 milhões de MPE no Brasil. Em 2014, essas empresas representaram uma participação de 22,5% em relação ao PIB da indústria – bem próxima à participação das médias empresas (24,5%). “Embora economicamente representativas, as MPE apresentam restrições financeiras e estruturais que, associadas a algumas fragilidades do SNI brasileiro, impõem limitações a suas ações inovadoras. O papel de MPE como difusoras de criações oriundas da pesquisa universitária e dinamizadoras do crescimento econômico é relevante em diversas nações, notadamente nos EUA, no Reino Unido e em Israel”, defende em sua tese.

A pesquisadora ressalta em seu trabalho que “a conexão entre universidades e empresas é um processo de longo prazo, interativo, dependente do contexto e de recursos especializados para sua concretização. O êxito nessa relação requer empenho contínuo das partes envolvidas para superação de barreiras e um sistema que favoreça a interação”. O esforço em facilitar em ampliar a oferta e a transferência de tecnologias desenvolvidas na universidade não são suficientes para evoluir um sistema de inovação. Para ela, é necessário unir esforços e uma estratégia ampla dos atores envolvidos: universidades, empresas e governo.

A Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento de Empresas Inovadoras (Anpei) realizou uma análise do Marco Legal e dos pontos disponibilizados pelo governo na plataforma participa.br – plataforma de consultas públicas do governo federal. A contribuição para o decreto regulamentador somou a opinião de vários associados da Anpei, organizado por um comitê liderado por Patricia, que correspondem a empresas, universidades e fundações de pesquisa, e foi enviada ao governo em julho deste ano. As recomendações renderam a organização de um evento realizado em agosto, em Brasília, para discutir pontos do Marco Legal. O evento, intitulado “Seminário sobre o Marco legal dee CT&I: instrumentação para ambiente menos propenso a crises” discutiu, sobretudo, os itens vetados pela ex-presidente Dilma Rousseff.
“Esses vetos limitaram a eficácia do Marco Legal, seu benefício e o seu alcance. Então, esse evento quis ouvir as empresas e alguns atores institucionais, como Anpei e o Fórum Nacional de Gestores de Inovação e Transferência de Tecnologia (Fontec) [entre outras entidades da Aliança em Defesa do Novo Marco Legal], que produziram uma carta pedindo que seja votado o texto original do Marco Legal”, diz.



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